Por Isabela Boscov | Veja
São vários os paradoxos que a série Animais Fantásticos enfrenta em seu terceiro capítulo, Os Segredos de Dumbledore (Fantastic Beasts: The Secrets of Dumbledore, Inglaterra/Estados Unidos, 2022), em cartaz a partir do próximo dia 14. Por exemplo: os cinco filmes planejados para ela devem compor um prólogo para Harry Potter. Mas, à parte os personagens presentes em ambas as fases, até aqui ainda não se vislumbra um encadeamento. As criaturas que dão título à saga e são o objeto de estudo do magizoólogo Newt Scamander (Eddie Redmayne) viraram coadjuvantes — assim como o próprio Newt. Bruxos muito mais experientes que Harry e seus jovens amigos da Escola Hogwarts estão em cena, mas aqui a magia em geral não é feita para encantar, mas para ser feroz, violenta, drástica. Os não iniciados no universo de Harry Potter reclamam da dificuldade de compreender a trama, enquanto os fãs se queixam da distância entre este mundo e aquele que os cativou. E muita coisa acontece, mas a sensação generalizada é de que o enredo pouco avança; o único consenso, ao que parece, é sobre a altíssima qualidade da produção. Os Segredos de Dumbledore, em suma, estreia com fortes ventos contrários.
Há outra possibilidade a considerar, porém: a de que a série tenha sempre desejado ser uma criatura à parte. O filme inaugural, de 2016, se passava em meados dos anos 1920, quando a intolerância, o nacionalismo e o conservadorismo exacerbado tentavam sufocar a agitação e o cosmopolitismo do período entreguerras. O segundo, de 2018, abordava a sedução dessa mensagem de medo e rancor: assim como ela fez o fascismo se alastrar nos anos 1930, em Os Crimes de Grindelwald o mago do título aliciava seguidores com imagens de um futuro em que tanques rolariam por cidades reduzidas a escombros e uma explosão traria um clarão nunca visto.
O argumento que Gerardo Grindelwald (então Johnny Depp, agora Mads Mikkelsen, trazendo complexidades embriagantes ao papel) propunha, e que ele ora quer pôr em prática, é que os "trouxas" — os mortais comuns — são uma ameaça não só ao mundo deles, mas também ao dos bruxos, e têm de ser destruídos. O paralelo com a trajetória de Adolf Hitler não é sutil: parte de Os Segredos de Dumbledore se desenrola em uma Berlim tomada por flâmulas, onde o sinistro Grindelwald, recém-saído da prisão, quer tomar o poder sobre todos os bruxos pela via eleitoral e então iniciar uma guerra total. (Sua adversária é a moderada Vicência Santos, um papel pequeno ao qual Maria Fernanda Cândido dá gravidade e serenidade.)
Impedido de agir diretamente contra Grindelwald em razão de um pacto de sangue e em dívida com Credence (Ezra Miller), o órfão de poderes terríveis, Alvo Dumbledore (Jude Law) recruta um grupo díspar de ajudantes, integrado pelo padeiro "trouxa" Jacob Kowalski (Dan Fogler), pela professora Lally Hicks (a ótima Jessica Williams), por Newt — a quem cabe proteger uma criatura mágica de importância crucial —, seu irmão Theseus (Callum Turner) e sua assistente, Bunty Broadacre (Victoria Yeates). Oscilando entre esse cenário de chumbo e o humor excêntrico, a direção de David Yates, em sua sétima incursão nesse universo, é fluida como sempre, mas nem sempre harmônica nas transições.
O que a nova série talvez não tenha previsto é que, ao se aproveitar do movimento inercial de Harry Potter para se lançar, seria atropelada por ele em algum momento. Se nos livros a autora e agora roteirista J.K. Rowling politizava as relações interpessoais, em Animais Fantásticos ela personaliza a política, por meio de personagens que se veem forçados a agir diante de forças que se articulam de modo inexorável. Interessante em si mesmo, o movimento de Rowling parece entretanto frustrar as expectativas da geração que cresceu lendo seus livros, descontente também com o que se passa fora de cena: o processo judicial que Amber Heard, ex-mulher de Depp, move contra ele por agressão; os episódios de comportamento violento de Ezra Miller; e sobretudo as declarações controversas de J.K. Rowling sobre pessoas trans, que resultaram em clamor e cancelamento, e talvez tornem a plateia menos disposta a ouvir dela as mensagens de tolerância, humanidade e racionalidade de Animais Fantásticos — por mais apropriadas que sejam.
Deixe seu comentário