CRÍTICA DE HARRY POTTER E AS RELÍQUIAS DA MORTE - PARTE 2
Por Pablo Villaça | Cinema em Cena
Por Pablo Villaça | Cinema em Cena
Quatro diretores, oito filmes e dez anos. Fielmente adaptada a partir dos livros da britânica J.K. Rowling, a série Harry Potter se estabeleceu, ao longo da última década, como um universo ambicioso que, tendo sua jornada cinematográfica iniciada à sombra da trilogia de Peter Jackson, agora se encerra como um marco inquestionável da Sétima Arte justamente quando o diretor neozelandês prepara-se para voltar à Terra-média. Mas se em 2001 o bruxinho empalidecia diante de Gandalf, agora são os personagens comandados por Jackson que terão que se erguer à altura do invejável padrão estabelecido pela série inspirada na obra de Rowling.
Retomando a história exatamente a partir do angustiante desfecho do capítulo anterior, As Relíquias da Morte Parte 2 traz o mundo dos bruxos agora dominado por Lorde Voldemort (Fiennes) e Hogwarts, antes um espaço seguro, cercada por dementadores e com o sombrio Snape (Rickman) no papel de seu diretor. Enquanto isso, Harry (Radcliffe), Hermione (Watson) e Ron (Grint) continuam sua busca pelas horcruxes que, contendo partes da alma do vilão, devem ser destruídas para que Você-Sabe-Quem possa finalmente ser derrotado – e não demora muito até que todos estejam de volta à escola de magia em um combate intenso e violento que inevitavelmente resultará em dor, sofrimento e morte para muitos dos personagens que conhecemos ao longo dos sete longas anteriores.
Mais uma vez roteirizada por Steve Kloves (responsável por todos os demais filmes com exceção de A Ordem da Fênix), a produção não perde tempo em explicar os conceitos e elementos já estabelecidos ao longo dos anos – e um iniciante na saga que tentasse assistir a Relíquias da Morte sem se familiarizar com os demais títulos certamente ficaria completamente perdido ao se deparar com incidentes envolvendo a Sala Precisa, penseiras, capas de invisibilidade e transformações físicas inexplicáveis. Em vez disso, Kloves acertadamente opta por manter a história sempre em andamento, já que sabe ter pouco mais de duas horas para amarrar uma década de tramas e subtramas. O resultado é que, mesmo trazendo alguns problemas óbvios na condução da narrativa (como ao repetida e convenientemente trazer Harry “enxergando” o paradeiro das horcruxes seguintes), este derradeiro episódio representa um desfecho sólido e satisfatório para a série.
Completando de vez o mergulho na atmosfera tensa e sombria iniciado desde A Ordem da Fênix, este Relíquias da Morte não exibe traço algum da leveza que marcou a saga em seu início; em vez disso, já inicia a projeção com a logo da Warner dominada pelo cinza e acompanhada por uma trilha triste e sem esperança – e mesmo que aqui e ali haja momentos pontuais de humor (“Eu sempre quis usar este feitiço!”), estes logo cedem espaço a imagens assustadoras como a de centenas de criaturas ameaçadoras correndo pela noite em direção a Hogwarts. Além disso, o sentimento de urgência evocado pelo cineasta David Yates continua a ser construído de forma inteligente ao lado de alegorias políticas e históricas que jamais poderiam ter sido antecipadas em A Pedra Filosofal: assim, quando vemos Snape supervisionando blocos de alunos uniformizados caminhando em formação nos pátios de Hogwarts, é impossível deixar de pensar na juventude hitlerista ou, no mínimo, em sociedades dominadas pelo fascismo absoluto.
Esta abordagem realista, que confere verossimilhança a um universo fantástico que traz bolas de fogo comportando-se como criaturas inteligentes, já havia sido iniciada por Yates no capítulo anterior, mas aqui atinge seu ápice ao envolver uma Hogwarts que, de palco de encantamento e diversão, surge agora quase como uma casamata, funcionando como último posto de defesa dos bruxos que se opõem à ditadura de Voldemort. Mas ainda mais importante é perceber que o cineasta jamais abre mão de ancorar a batalha em uma escala fundamentalmente humana – e, assim, se as sequências de batalha seriam celebradas pela maioria dos diretores através de trilhas bombásticas que salientariam o espetáculo e as explosões, aqui Yates opta por temas musicais melancólicos (compostos com talento por Alexandre Desplat) que nos lembram de que ver Hogwarts destruída é motivo de tristeza, não de júbilo. Da mesma forma, o filme merece aplausos por encontrar tempo para retratar a reação e o choque dos personagens diante da destruição, do caos e da morte – e se em várias produções dramáticas envolvendo confrontos sangrentos os envolvidos mal parecem notar a tragédia ao seu redor, não deixa de ser surpreendente que uma obra fantasiosa abra espaço para que as perdas sejam devidamente absorvidas e processadas.
É claro que colabora para isto o fato de a série Harry Potter trazer um elenco de veteranos invejável que se dá ao luxo de empregar figuras como Emma Thompson, Jim Broadbent, Julie Walters, Gary Oldman, John Hurt e Kelly Macdonald em aparições que são pouco mais do que pontas glorificadas. Mas mais do que isso: a experiência de atores como Jason Isaacs, por exemplo, é fundamental para que muito seja comunicado ao espectador através de pouco – e ver Lucius Malfoy com a barba por fazer e obviamente tenso, contrastando com sua anterior aparência impecável e modos arrogantes, é o bastante para que percebamos o peso da presença de Voldemort. E se é prazeroso perceber a evolução de figuras menores como Neville (Lewis), que de garotinho assustado se transformou em um rapaz alto e valente, é igualmente satisfatório constatar os arcos vividos pelo trio principal: longe do menino empolgado com a magia recém-descoberta, Harry agora é um jovem adulto conformado com o auto-sacrifício, ao passo que Ron, antes tão brincalhão e desajeitado, surge como um rapaz tenso e repleto de iniciativa. Enquanto isso, Hermione, mesmo exibindo o velho pendor para sermões e o ativismo (vide sua observação sobre o dragão preso em Gringotes), agora se revela bem mais pragmática e disposta a ouvir as ideias dos companheiros.
Mas falar do elenco de Relíquias da Morte sem discutir Alan Rickman como Severo Snape seria impossível – e o fato é que o ator completa, aqui, uma das trajetórias mais interessantes de toda a série. Exibindo a mesma dicção pausada e precisa que parece indicar o cuidado de Snape em pesar cada palavra antes de permitir que estas deixem sua garganta (e que revela sua preocupação em jamais dar um passo em falso), o ator é brilhante ao incluir elementos de admirável sutileza em sua composição. Observem, por exemplo, a cena em que o personagem ameaça os alunos que estiverem protegendo Harry e percebam sua expressão receosa, como se temesse a eficácia de suas ameaças, e constatarão a riqueza de um trabalho que, banhado em ambiguidade, estabelece Snape como a figura mais complexa da saga. Da mesma forma, Michael Gambon ganha a oportunidade de retornar a Dumbledore, mesmo que através de flashbacks, e retratar um lado antes inexplorado do mestre bruxo, tornando-o mais sombrio e, consequentemente, ainda mais fascinante.
Ainda assim, apesar de todas as suas inúmeras virtudes, Relíquias da Morte peca em alguns pontos importantes: por um lado, a abordagem direta e humanista de Yates merece aplausos por jamais permitir que o filme ignore a tragédia (e, assim, ao fim da batalha, em vez de comemorações ou gritos de júbilo, vemos os sobreviventes exaustos e entristecidos pelas perdas); por outro, esta preocupação em evitar o melodrama acaba deixando alguns dos momentos mais importantes da série excessivamente frios – e várias das mortes aqui vistas deveriam (melhor: mereciam) provocar um impacto emocional maior que, infelizmente, jamais é alcançado. Não que o filme não tenha força dramática: ao ouvir certo personagem dizer “Você tem os olhos de sua mãe”, por exemplo, senti-me profundamente tocado pela dor e pela complexidade de sentimentos que aquela simples frase revelava, mas em vários outros pontos senti falta do nó na garganta que eu sabia que determinados incidentes provocariam nas mãos de um diretor menos afeito à racionalidade. Seja como for, as decisões artísticas de Yates são claramente frutos de decisões conscientes, não de acidente ou incompetência, e, assim, merecem respeito por no mínimo respeitarem a inteligência do espectador.
Aliás, não há como negar que o cineasta compreende o universo que assumiu em A Ordem da Fênix e também aquilo que o torna tão querido ao público – e esta compreensão pode ser constatada através dos últimos segundos de projeção: se a maior parte dos diretores não resistiria à ideia de encerrar a série com um plano aéreo que, se afastando daquele mundo, revelaria Hogwarts, o Beco Diagonal e campos de quadribol numa imagem de despedida final, Yates opta por concluir a saga com a câmera próxima ao rosto de seus atores, demonstrando perceber que, fantasiosa ou não, a série se tornou adorada graças aos seus personagens, não aos efeitos visuais ou ao espetáculo.
E que jornada vivemos: de um bicho-papão de conto de fadas, vimos Voldemort se revelar um ditador sanguinário e fascista; acompanhamos a transformação do mundo iluminado e ensolarado da magia e das partidas de quadribol em um pesadelo cinzento e nublado e testemunhamos os risos infantis divertidos do elenco juvenil cederem lugar às lágrimas e às angústias da adolescência e do reconhecimento de que a morte é uma realidade da vida. Ao longo de uma década, a série Harry Potter transportou crianças de 5 a 90 anos de idade em uma viagem intensa, imaginativa, envolvente, tocante, divertida, inteligente e deliciosa.
E saber que o Expresso de Hogwarts deixou a plataforma 9 3/4 pela última vez não deixa, portanto, de representar um sentimento profundamente agridoce.
Observação: a versão em 3D foi convertida a partir do 2D e, como tal, é decepcionante e descartável. Aproveite o menor preço dos ingressos na versão tradicional para se despedir da série mais vezes nos cinemas.
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